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Entrevista: Marilena Chauí, entre a militância e o raciocínio
Nesse momento de disputa política, principalmente com a proximidade das eleições, o EstudanteNet selecionou trechos de uma entrevista com a filósofa Marilena Chauí publicada na edição de setembro da revista Fórum. Respeitada no Brasil e exterior como uma das maiores intelectuais do país, a filósofa fala sobre política com uma clareza impressionante, sem medo de assumir posições, apontar equívocos e suscitar a reflexão.
Elogiada e criticada em demasia durante a crise política dos meados de 2005, Chauí mostrou que milita e raciocina de maneira surpreendente. Ela falou aos jornalistas Renato Rovai e Glauco Faria sobre a conjuntura brasileira, estrutura partidária, reforma política e os rumos ideológicos no Brasil pós eleições. Confira:
Levando em consideração que estamos em meio ao processo eleitoral, a senhora pode iniciar esta entrevista fazendo uma reflexão a respeito da reforma política?
A reforma política é questão prioritária, e digo isso porque aconteceram dois momentos decisivos na história brasileira que transformaram a forma das instituições políticas do país e fizeram-na a ser como são hoje. O primeiro instante abordei em Leituras da Crise, livro da Editora Perseu Abramo. Trata-se da reforma realizada por Geisel e Golbery. Naquele momento, se faz um arranjo político de maneira a garantir mais poderes à Arena em relação ao MDB. E o resultado incide particularmente no problema da representação. Por conta disso, a forma da representação no Brasil ainda hoje está toda determinada por uma visão de poder do final da ditadura.
Mesmo com o processo de democratização do país, não se tocou naquilo que, do ponto de vista da operação da política, foi a chave do poder ditatorial. Então, quando me refiro à necessidade da reforma política, o primeiro alvo é desmontar a estrutura partidária montada pelo general Golbery do Couto e Silva.
O segundo instante é o que acontece com o Estado brasileiro durante o governo Fernando Henrique, que, entre outras metas, teve as de desconstruir, desinstitucionalizar e desconstitucionalizar o país pela demolição do aparelho estatal. Aí temos um campo minado. Como é que se vai efetivamente governar, legislar, representar e operar a presença do Estado na área social e na definição do perfil econômico do país se, por conta da forma como se estrutura a representação, o governante não pode contar com base legislativa? A noção do voto proporcional, a aritimetização da representação, a falsa proporcionalidade e a desconsideração dos mecanismos efetivos dessa representação tornam impossível um partido político que ganhe no Executivo governar o país. E os governantes convivem em escala menor com esse problema no plano do estado e no plano municipal. O resultado disso é a falsa aliança, na medida em que, para que ela existisse efetivamente, seria necessário definir um projeto político e um programa de governo que representasse efetivamente as posições sociais, econômicas e políticas dos aliados. E isso não tem acontecido no Brasil. Nem mesmo na aliança do PFL com o PSDB ou na do PT com o PL, que foi uma brincadeira. Isso significa que o atual modelo também compromete o partido como instituição, porque ele não consegue exprimir-se em termos nacionais e não tem condições de realizar no governo a expressão do seu projeto político-partidário. Isso é uma catástrofe e vale para todos os partidos.
Mas a crise de 2005 teve como ponto central a questão da corrupção, a senhora então parece apontar que isso está relacionado à forma de organização política do país?
Não se pode fazer do combate à corrupção um combate moral. A verdadeira corrupção se dá por conta da forma como está estruturada a instituição, que produz como ação possível dela a corrupção. Então, quando penso a reforma política, tenho que tratar da mudança da representação e da reforma partidária, do modo de expressão do Legislativo e do Judiciário, da relação entre cada partido e a aliança que ele realiza e sua expressão nos projetos e programas sociais. Isto tudo implica também uma mudança no nível do aparelho estatal.
É bem verdade que o governo Lula recompôs muito do aparelho estatal, mas há ainda outro problema para além da decomposição a que foi submetido no governo FHC. Na medida em que o Estado brasileiro foi montado pela classe dominante brasileira, ele é regulado juridicamente por um conjunto de leis, pareceres, resoluções, decretos e portarias que a concepção que essa classe tem da política, do Estado e do que deve ser um governo. Há uma muralha jurídica que impede um partido de esquerda realizar metade de suas propostas.
A reforma política também tem que ter em mente a democratização do Estado brasileiro que tem uma forma completamente oligárquica e autoritária. Não basta o conjunto de propostas que a Constituição tem, fruto do trabalho dos movimentos populares é preciso vontade política e um poder político capaz de desenvolver a democratização do Estado.
Como a senhora explica o PSDB? Qual a seu ver é o projeto político-partidário deles?
É preciso levar em conta que o PSDB nasce contra o quercismo. Sai de dentro do PMDB contra o Quércia e com um discurso moralista, mas, na prática, a saída teve a ver com o fato de o grupo que o organizou ter perdido poder no PMDB. Ou seja, o Quércia tinha ganho a parada e esse grupo resolveu sair. A saída também precisa ser entendida a partir da mesma lógica da não-entrada desse grupo no PT. Por que esse grupo não entrou no PT? Ouvi deles que não iam entrar porque não aceitavam ser conduzidos por um macacão azul. É literal. Diziam "não vamos ser conduzidos por um macacão azul". A criação do PSDB se dá por falta de alternativa. E por que decidem se assumir como social-democratas? Também é preciso levar em conta o que tinha acontecido com a social-democracia que os levou a se denominar assim. A social-democracia era o new labor e a Terceira Via, portanto um compromisso claro com a política neoliberal. A aliança que se deu com o PFL, embora deva ser explicada a partir de todos os defeitos que é o horror da nossa estrutura partidária e a forma da representação que temos, não é gratuita. Foi a escolha de um aliado que não tem programa. O programa do PFL é manter as coisas como estão para ver como é que fica ele tem como meta a manutenção do poder que vem desde o período colonial. Por isso, insisto, essa aliança não foi casual. Foi a aliança da ausência de programa e projeto de um grupo que tinha por objetivo a permanência de certas formas de poder econômico e político, com o programa da Terceira Via, que é perfeitamente compatível com a hegemonia neoliberal e com a perspectiva oligárquica do PFL.
E o Fernando Henrique foi o grande intelectual desse processo?
Sem dúvida. Ele é uma inteligência fervorante. Em 1981, estava escrevendo Democracia e Socialismo e fui estudar um pouco o que se dizia do Brasil e, particularmente, o que os sociólogos diziam. E a diferença entre os escritos dele e os dos outros me deixou impressionada. Era de uma inteligência extraordinária. Ele é a alma dessa concepção, não tenho a menor dúvida. Por um lado, o que estava na cabeça dele era dar a si próprio um destino. Para ser rei, ele teria que se dar um destino. Mas também, além de assegurar a si um destino, tinha por objetivo realizar aquilo que todos os escritos dele, como sociólogo, sugeriam. E uma coisa nuclear nos escritos dele é a idéia de modernidade. E o que é a modernização nessa concepção? É fazer o país se equiparar aos países do capitalismo desenvolvido. Se estivermos up to date com o que os países de capitalismo central estão realizando, então estamos realizando algo moderno. Ora, o que eles realizavam era o neoliberalismo, mas com viés da Terceira Via.
A busca dessa modernidade definiu a política do PSDB. Ou seja, não é verdade o "esqueçam o que eu escrevi". Um dos pólos fundamentais da escrita sociológica do Fernando Henrique é a paixão pela modernidade, que o leva, no momento em que vai fazer política, a realizá-la com aquilo que era entendido naquele momento como modernizador.
O segundo elemento, se você toma a tese sobre os escravos, todos os textos sobre a teoria da dependência, ele explica o Brasil a partir de um critério. Esse critério é Estado, o capital nacional e o capital internacional. Ou seja, a análise exclui a classe trabalhadora. Não tem classe trabalhadora. O trabalhador não é sujeito histórico, não é sujeito político. É o que aparece na tese de doutorado dele sobre os escravos, tidos como instrumentos passivos da vontade do senhor. As revoltas, as rebeliões, as formas de compromisso que assumem com os senhores, todo o trabalho dos escravos para se constituir em um novo sujeito foi ignorado.
A senhora diz que o PT precisa mudar, mas essa mudança virá? Se vier a acontecer, o que pode vir desse processo?
Não será um retorno às origens, até porque 2007 não poderá ser um retorno a 1980. Mas é possível refazer as formas de organização anterior da sociedade, é possível repensar, por exemplo, as ONGs. Entre outras coisas, penso que as ONGs foram elementos muito destrutivos da história do PT. Porque uma coisa é um movimento social, outra coisa é uma ONG. Muitos dos movimentos sociais petistas transformaram-se em ONGs para sobreviver. E por quê? Porque se passou a ter uma estrutura hierárquica, burocrática, profissionalizada se definindo como partido e todo o resto ficou de fora. Os movimentos sociais tornaram-se incapazes de intervir em tomadas de decisão, em deliberações e em propostas de políticas nessa hierarquia autoritária, centralizada e profissional. Então, o que aconteceu? Esses movimentos, para não perderem as bases sociais que possuíam, se transformaram em ONGs. Mas a ONG, no fundo, é uma organização parasitária e opera no fim das contas como grupo de lobby. Ou seja, não tem de maneira nenhum uma natureza política ativa, transformadora, que o movimento social tem. Uma das coisas que imagino que vá acontecer é o desmanchar de muitas ONGs e o retorno de movimentos sociais e populares como a base constitutiva do PT. Penso também que teremos força para desmontar a estrutura de organização e direção que predominou e levou à crise de 2005.
No auge da crise, muita gente duvidava que Lula pudesse ser candidato à reeleição, se fosse outra personalidade, mesmo que pertencesse aos quadros do PT, será que conseguiria terminar o mandato em meio àquilo tudo?
Acho que não. Para entender isso, vou voltar aos anos de 1980, 1981. Durante a discussão da fundação do PT e depois, bem no início, criou-se uma escola de quadros, que era para formar as lideranças sindicais. Participei desse projeto com o Francisco Weffort, o José Álvaro Moisés e outros intelectuais. O Lula estava lá, toda a gente, todo o grupo dos operários do ABC estava lá. As discussões eram muito acaloradas. Num certo dia, houve um longo debate e honestamente não me lembro mais qual era questão, mas recordo-me do ritmo que tomou. Alguns queriam que aquilo fosse resolvido de hoje para amanhã, outros queriam que a solução fosse naquele dia mesmo e não amanhã. E alguns defendiam que se desse na semana que vem. O Lula, então, fez a seguinte observação, que guardo até hoje: "vocês (para os intelectuais) parecem não levar em consideração aquilo que é próprio da classe trabalhadora. Nós temos muita paciência, nós temos uma paciência histórica, a gente sabe que de hoje para amanhã tem uma noite no meio e essa noite no meio pode fazer com que de hoje para amanhã tudo tenha mudado. A gente precisa ter muita paciência, ir muito devagar". Nunca me esqueci disso, porque na hora eu pensei, é isso mesmo. Intelectual de classe média é imediatista e acha que as coisas acontecem da noite para o dia. Quem tem a história de classe junto com ele e vem dessa história de fato precisa ter construído o que construiu com uma enorme paciência histórica.
Acho que foi isso que o Lula mostrou durante o ano de 2005. Ele falou pouco, e aguardou. Houve vezes em que eu teria preferido que ele falasse, fizesse outras demissões mais depressa, enfim, aspirava por um ritmo diferente e por um discurso mais amplo e mais constante, mas acho que ele sabia o que estava fazendo. Ele tinha presente àquilo que nós de fora não tínhamos, porque nós temos tudo isso muito fragmentado. Ele tinha as realizações do governo e sabia que os resultados disso apareceriam. E que era preciso aguardar que aparecessem de uma forma para que a população os percebesse. E, em vez de ele tentar suscitar através do discurso uma adesão da população a ele, fez o contrário. Teve paciência, esperou que a população aderisse ao governo e por isso aderisse a ele. Acho isso de uma sabedoria política gigantesca.
Em relação à política social do governo, ao bolsa família, o que mais se diz pela mídia é que é demagogia, populismo, chavismo, mensalinho, o que essa interpretação lhe parece?
Primeiro, é preciso perguntar a esse pessoal o que eles têm contra o Chávez. Eles precisam explicitar o que têm contra. Depois, acho importantíssimo dizer que tudo aquilo que no Brasil opera no sentido da dimensão da desigualdade econômica e social é considerado populista, paternalista, demagógico, atrasado. Seria interessante perguntar a esse pessoal o que é uma política social moderna. Se essas pessoas que criticam explicitassem o que é uma política social moderna e como é que se realiza uma política social moderna com pleno emprego e distribuição de renda, calo a boca. Mas eles não têm como responder, a não ser com malthusianismo social, ou seja, uma parte que tem que desaparecer, tem que acabar, tem que morrer, seleção natural.
Tratando de novo e velho, é possível um projeto político de uma esquerda moderna?
Não, porque se for de esquerda não abrirá mão de dizer que a exploração está ligada à mais-valia e que a mais-valia quem produz é a classe trabalhadora, não tem jeito. Por isso um projeto como a Terceira Via é a maldição da esquerda, porque é projeto de capitalismo de face humana. Agora, acho que a esquerda modernizou muita coisa, conseguiu introduzir a questão feminina, o tema da juventude, a questão dos direitos humanos, uma quantidade muito grande de temas e questões que não faziam parte do repertório nacional.
*Entrevista originalmente publicada na Revista Fórum (novembro-2006)
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